Entre pensadores e aviões


Num mundo polarizado, de extremos, onde um fervor quase religioso nos impede de ouvir, analisar, entender outras visões da realidade, há muita energia gasta à toa, um desperdício desmedido, uma perda enorme de capital humano. A maior perda, lamentavelmente, se dá no campo da ciência, do conhecimento. Para ilustrar, tomo um exemplo do mundo da psicologia, mais especificamente da ala que trata dos estudos da cognição. Há alguns fervorosos defensores de Jean Piaget que se desentendem com aqueles que defendem a visão de Lev Vigotsky. Já outros, entendem que nem um nem outro, mas Henri Wallon é quem tem a melhor escola em se tratando do tema da cognição humana. O curioso, porém, é que estes três grandes pensadores olhavam o mesmo tema sob óticas totalmente distintas mas plenamente complementares. Piaget focava o tema sob um olhar da biologia, buscando entender os mecanismos e estruturas cerebrais envolvidos neste processo. Vigotsky estudava os mecanismos de cognição a partir da influência do ambiente, do mundo, das estruturas sociais. Já Wallon, por ter tido muito contato com crianças traumatizadas pelo pós-guerra, traçou seus estudos sob a ótica da afetividade, dos sentimentos. Porém suas visões não são mutuamente excludentes, mas complementares, (felizmente há muitos que já enxergam como urgente uma epistemologia que una estas visões). A grande dor de nossa civilização neste momento, é que buscamos explicações fáceis e simplificadas para problemas complexos e multifacetados. Assim como nós mesmos, nosso mundo é complexo. E se buscamos respostas simples e ignoramos quem pensa diferente, o choque de visões é inevitável. O choque em si nem é um problema, muito pelo contrário, é proveitoso para testar as ideias, repensar conceitos e por ai vai. O problema é quando cada um se encerra dentro de sua própria bolha, deixando de ouvir quem pensa diferente. Daí, para permanecer dentro do exemplo, ao invés de ganharmos uma teoria unificada, plena e completa, ganhamos ‘piagetianos’ brigando com ‘vigotskianos’ que por sua vez também se desentendem com ‘wallonianos’. Sabe Deus o quanto já teríamos avançado neste tema se a energia gasta na disputa das bolhas fosse direcionada na unificação das visões. Logo, em prol do próprio bem da civilização, é fundamental buscar enxergar as situações por todos os prismas possíveis e colaborar unificando visões. Tomando um outro exemplo, agora na ramo da aviação comercial, é muito comum logo após um acidente, ou até mesmo num mero incidente, surgirem nas grandes mídias matérias urgentes sobre o que aconteceu. Geralmente alardeadas num fervor e pressa típicos das mídias de massa, a informação agora 'online' e 'real-time' cobra o alto preço da profundidade rasteira em favor da urgência. A depender única e exclusivamente da mídia, julgaria-se a culpa de um incidente entre os pilotos, os controladores de voo, ou ambos, e está “tudo resolvido”. Porém, felizmente, a diligência e responsabilidade tão características da aviação, tratam cada evento com uma visão integral, 360 graus, removendo todo o fervor em prol do processo, do método e rigor científico. Um laudo de um acidente leva no mínimo um ano para ficar pronto, sendo os casos mais complexos, alguns anos. O resultado deste trabalho abrangente e integrado é uma visão tão completa dos fatores causadores do acidente, que toda a industria é impactada e modificada para sempre. Não raras vezes, descobre-se que um aparente erro humano só aconteceu por ter sido induzido por uma outra falha, seja de projeto ou ausência de mecanismos de contingência. Logo, para cada evento, a historia da aviação é dividida entre um antes e depois. Isso explica o altíssimo grau de excelência e segurança atingido por esta área. Mas isso só se tornou possível pela disciplina em relação ao método, aos procedimentos e, principalmente, pela colaboração de várias disciplinas as quais, cada uma dentro de sua respectiva visão, se unem em prol de um objetivo comum que é o de diagnosticar em sua totalidade as causas de um incidente.
Portanto, se quisermos avançar como civilização, é urgente abandonar as explicações fáceis e rasas. Precisamos ampliar nosso grau de visão. A navalha de Occam, se necessária, só deveria ser usada após todas as hipóteses serem levantadas e estudadas colaborativamente, nunca antes. O mundo se tornou complexo demais para que uma única pessoa consiga explicá-lo. É preciso romper as bolhas e trocar ideias, conceitos. É preciso muito diálogo e acima de tudo muito respeito por quem pensa diferente. Pode ser que a resposta que você procura, a solução daquela difícil lacuna, está do outro lado, com teu vizinho, que pensa diferente de você.

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