Os Filhos de Harry Potter
Minha paixão por livros brotou muito cedo, em minha tenra idade de 5 anos. Lembro-me fascinado a ouvir as histórias que minha mãe lia para nós enquanto estávamos na cama para dormir. Meu pai, um ávido leitor, mantinha o que chamávamos de "a prateleira", com centenas de exemplares que iam de Ivanhoé à Enciclopédia Conhecer, de exemplares raríssimos da revista Seleções do Reader’s Digest dos anos 40, ao clássico A Ilha do Tesouro.
Neste ambiente, aprendi a ler muito cedo e com a leitura, o amor aos livros, os quais guardava com muito carinho. Ainda hoje tenho alguns exemplares comigo em minha própria mini-biblioteca.
Nas aulas de História lembro-me de ter aprendido que possivelmente a maior perda de livros ocorrida na história da Humanidade foi o incêndio da Grande Biblioteca da Alexandria, tida como a maior de toda Antiguidade. Estima-se que em seu apogeu, haviam cerca de um milhão de exemplares dos mais diversos assuntos. Um magnífico edifício abrigando todo o conhecimento clássico, registros e mais registros de culturas antigas, seus contos, poesias, fábulas e relatos históricos.
Fiquei a imaginar quantos tesouros foram perdidos neste terrível evento. Há quem argumente que o declínio desta Biblioteca não ocorreu como conta a história clássica, num incêndio provocado pelos romanos, mas num declínio gradual causado por falta de recursos de manutenção e perda de interesse pelas novas gerações, o que nos soa muito familiar. Seja qual for o motivo de sua decadência, quer seja num único evento cataclísmico, ou num burocrático sangramento contínuo e duradouro de seus tesouros, o fato é um só: - pouquíssimos exemplares chegaram até nós. Um ínfimo percentual pouco acima de 0%.
Mas o pouco que chegou até nós, já é suficiente para nos dar um lampejo do que havia neste maravilhoso local. Há 2.200 anos atrás, curiosamente lendo alguns de seus livros, um dos diretores desta biblioteca chamado Eratóstenes não só deduziu que a Terra era redonda, como também elaborou um meio engenhoso de calcular sua circunferência com precisão impressionante.
O que dizer então de Aristarco de Samos que afirmava em seu livro que a Terra era apenas mais um planeta dentre outros que circundavam o sol, contrariando o modelo apregoado por Ptolomeu, tido como verdadeiro até o século 15.
Porém, o livro que mais lamento ter sido irremediavelmente perdido era um compêndio em três volumes escrito por um babilônio chamado Beroso. A História do Mundo como era conhecido, narrava os eventos históricos desde a criação do mundo até a era de então. O primeiro volume tratava dos eventos contidos do princípio até o grande dilúvio, período narrado por ele ao longo de 432 mil anos de história!?!? Quantos eventos permanecerão desconhecidos para todo o sempre…
Quantos autores foram calados e suas obras jamais lidas novamente? Se o pouco que sobreviveu de Hiparco, Herófilo, Arquimedes, Euclides, Dionisio da Trácia já nos encanta, o que dizer dos demais que jamais conheceremos?
Recentemente presenciamos novamente em nosso próprio país as bibliotecas se esvaziando e um desinteresse geral pelos livros, com sua substituição em larga escala pelos programas televisivos de qualidade altamente questionável. Recursos antes destinados à manutenção de escolas e bibliotecas, agora são desviados para fins escusos. Ouvi outro dia uma frase que endosso: - um país que não investe em educação, cedo ou tarde terá de investir em presídios. Pura realidade.
Felizmente, uma nova geração de ávidos leitores estão surgindo, lentamente mas perseverantemente cobrindo a atual lacuna. Filhos de Harry Potter e das Crônicas de Gelo e Fogo, estão aprendendo a amar os clássicos, redescobrindo Shakespeare, Dostoiéviski, Rubem Alves, Tolstói, Machado de Assis dentre tantos outros. Até mesmo a Bíblia, tida outrora como livro mais lido no mundo, volta a ter suas páginas folheadas.
Armados com seus tablets, celulares e mesmo exemplares em papel, jovens retomam o interesse perdido pelos livros, ouvindo seus autores a sussurrar palavras que transcendem tempo e cultura, para além de dogmas políticos e religiosos.
Há quem se queixe do tipo de literatura publicado atualmente, julgando-a rasa e pueril, queixa razoável, o que concordo em partes. Mas isto não importa, porque o efeito colateral deste interesse é o despertar da paixão pela leitura, que ao longo do tempo trará frutos que persistirão, e serão muito bem-vindos numa sociedade ainda tão deficitária de cabeças pensantes.
Acredito que os primeiros movimentos que presenciamos neste ano, com as passeatas que se iniciaram sem qualquer liderança claramente definida, já é um reflexo desta nova geração. Que já começa a questionar o ‘status-quo', e a se posicionar frente a um modelo já tão desgastado de governo. Até mesmo a sua postura de se retirar dos movimentos na chegada dos black-blocs, demonstra sua seriedade e consciência. Acredito que a busca por conhecimento, a curiosidade aguçada, e principalmente o inconformismo, possam fazer brotar novos Nelson Mandela e Luther King, no âmbito social e político; Novos Albert Einstein e Benjamin Franklin para a ciência; Novos Muhammad Yunus no mundo financeiro. E tantos outros para as artes, cultura, esportes e assim por diante.
A nova geração possui uma abordagem totalmente diferente e imprevisível. Projetos colaborativos como o pioneiro Wikipédia que seriam inimagináveis há pouco mais de uma década atrás, hoje é uma realidade presente em vários segmentos de atuação. A Internet mudou para sempre a forma de compartilhamento de informações. Se hoje a mídia tradicional ainda é fortemente manipulada, os blogueiros munidos de seus smartphones publicam quase em tempo real, fotos e textos diretamente de seus fronts de batalha, contrapondo as Declarações Oficiais e trazendo outros pontos de vista para análise.
Assim como aconteceu na Antiguidade, onde um povo inquieto conseguiu realizar feitos há 5 mil anos atrás, os quais ainda não conseguimos reproduzir, o conhecimento pode trazer uma nova sociedade que evolui, que constrói sobre os alicerces deixados por nossos antepassados, abandonando toda a apatia e presunção para assumir um papel relevante para a História.
Sim, tal como ocorreu na antiga Alexandria, ainda há diversos fantasmas a nos rondar: - a insensatez que nos conduzem à guerra, a descrença em valores espirituais, o obscurantismo e ignorância que nos dessensibilizam para o que é realmente importante. Mas esperança e otimismo também fazem parte da argamassa para a construção de um mundo melhor.
Portanto esta nova geração merece toda nossa compreensão, apoio e incentivo. Sejam muito bem-vindos, filhos de Harry Potter!
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